30.8.09

sabes que se sente na voz a passagem do tempo
e que todos os caminhos levam ao mesmo refúgio nocturno

sabes como ir até ao longínquo instante da partida
sem nunca olhar para trás
a sombra nas paredes da casa
a mão levantada para o adeus que não viste

sabes que um dia encontrarás alguém
que te trará de volta todos esses dias
que te passaram pela pele sem deixar marcas

pouco a pouco chega-te o sabor amargo dessa dor
que só é perceptível nos gestos mais lentos

sabes que a morte se aproxima
escondida nos ponteiros do relógio que controlas a medo
presa nos objectos que levas contigo
como uma rua vazia para os teus passos

Viva a ignorância

O senhor Gonçalo Portocarrero de Allmada, revela neste texto a sua sabedoria inigualável, que põe todos os comuns mortais, ou seja nós, de joelhos à sua frente a beber as suas palavras.
Este homem está a falar a sério? É que se está tenham dó de mim, e do resto da humanidade, internem-no.
Com que então a educação sexual não faz falta nenhuma? Ah pois claro que não. O que nós queremos é raparigas de 14 anos grávidas e adolescentes com todos os tipos de doenças sexuais. Porque isso sim, isso é a verdadeira homenagem a D. Afonso Henriques e à importantíssima Igreja Católica e a pessoas como este senhor, cuja mentalidade infelizmente parou ali por volta da altura em que viveu D. Afonso Henriques.
Ora vamos analisar um ponto mais pormenorizadamente. O senhor acha que ter relações sexuais é o mesmo que respirar e comer. Bem, não quero ser ignorante, mas acho que se não tiver relações continuo vivinha da silva, se bem que a minha vida porde tornar-se menos interessante. Agora se deixar de respirar ou de comer, acho que não fico com muita saúde.
Ele pode ter a opinião dele e estar a defendê-la, e tem o direito de o fazer. Mas se esta é a opinião dele, e se ele a defende publicamente, como é o caso, num jornal diário de grande tiragem, lido por um grande número de pessoas, então a coisa complica-se. É que mais pessoas com esta ideia (e já basta as muitas que pensam assim) é um retrocesso na evolução das mentalidades que até dá arrepios de pensar.
P.S.: outra reacção aqui.

27.8.09

E por vezes parece que a noite desce só sobre nós
quando te sentas em silêncio no extremo do dia
e dizes tudo o que as palavras não podem dizer
como se chamas pousassem sobre as tuas pálpebras geladas
ou nos lábios surgisse o murmúrio de uma paixão antiga

e por vezes todas as horas desaparecem dentro dos teus olhos
já não há tempo para despedidas
debaixo dos meus gestos frágeis avança a tua ausência

as sombras cintilam desesperadamente rente às paredes
a loucura devassa os corpos exaustos
e traz a lembrança dos teus tristes dezasseis anos

as mãos trémulas cheias de cicatrizes farrapos de solidão
que lentamente se acumulam para esboçar
esta nossa morte a todos os momentos incerta

Procurar um lugar melhor

Leiam. Porque ainda há quem pense que "não podem entrar todos".

26.8.09

Do tempo ao coração

Do tempo perdido para te ver chegar
aos versos exactos dos poemas tão teus
da morte que nos encontra em qualquer lugar
ao tempo que não tenho para dizer adeus

Da amargura dos dias lentos que não passam
ao cansaço das noites que não adormecem
de todos os amantes que não nos abraçam
aos abraços que se dão e nunca se esquecem

Do corpo despido à nudez que se demora
do fascínio do sol à noite mais escura
sessenta minutos que não são uma hora
quando coisa nenhuma é a coisa mais pura

De uma dor que dentro de mim continua a arder
de outra dor por não te ter agarrado na mão
ao que tu me deste e eu não podia receber
ao que eu não te dei para te dar o coração

pequena e humilde homenagem a David Mourão-Ferreira (1927-1996)

Miguel Vale de Almeida

A entrevista não é recente, mas mesmo assim vale a pena ler. Este homem é um senhor, de opiniões firmes, cujos textos gosto de ler e uma pessoa que sinceramente admiro.

E, já agora, vejam também este texto sobre outro grande homem, Pedro Almodóvar, que não tem papas na língua.

'Till the end

Isn’t here where it all begun,
where lay all the mistakes you’ve done?
Wasn’t this our one choice,
waiting for the silence in your voice?
Why can’t I seat beneath the trees,
staring at a world that no one sees?
Why should I wake up now,
if our life is a broken vow?

Wanna go ‘till the end,
wanna burn the letters I’ll never send.
Can’t pretend my dreams still linger,
now they’re the words of a ruined singer.

Wasn’t this the last true thing,
the only song you would never sing?
Aren’t our secrets in held hands
the mystery that no one understands?
Can’t lose now what I’ve found,
can’t throw these years to the ground.
If you can’t stay to listen me
I’ll runaway to let you free.

Miss you’re smile so wise,
for my end it was the only disguise.
Now you’re gone and I’m dead
there’s nothing left to be said.

25.8.09

Estupidez crónica

Ora bem, o senhor Alberto João Jardim, esse poço de civilidade e cuidado de conduta e comportamentos impossíveis de criticar, vem, indignadíssimo, criticar, mais uma vez, a homossexualidade. E enquanto o dito senhor faz isso, o público demonstra entusiasticamente a sua concordância apupando e vaiando.
Do meu humilde ponto de vista, há aqui um problema. Esta gente, e toda a gente deste país, acha que tem alguma coisa a ver com a vida dos outros. Mas não têm. Ninguém lhes pede para aceitarem seja o que for, porque eles não têm de aceitar coisíssima nenhuma. E por isso mesmo não têm de ter atitudes de uma estupidez indiscritível, como é o caso desta.
Mas claro que as coisas vão continuar a ser assim, e claro que vai continuar a haver vaias e apupos e insultos, e uma burrice aguda por este Portugal fora.

PS:Aqui e aqui ficam mais dois comentários a esta triste situação, e com muita pena minha não consegui fazer ligação para o editorial do jornal 24 Horas de 24 de Agosto de 2009.

24.8.09

Shattered Glass

Costumávamos correr pela praia, aos sábados de manhã, quando a cidade ainda dormia e a noite já era só uma sombra anil sobre o mar. Saíamos bem cedo, com o vento frio a bater na cara e ríamos à gargalhada pelas ruas desertas. Depois o mundo era só nosso, enquanto nos deitávamos na areia molhada, a olhar para o céu e a falar do nada. Falávamos horas a fio, até não termos mais assunto.
Quando o mundo acordava para um novo dia, já nós tínhamos vivido metade das nossas vidas naquela praia, nesta praia, em todas as praias para onde fugíamos a meio da madrugada. A praia era o nosso paraíso, o nosso universo secreto, gerado à parte das convenções e das regras, onde só nós tínhamos poder para viver à nossa maneira.
Foi em todas essas praias que me apaixonei por ti, quando te atiravas para o mar, e me dizias adeus. Levei tempo a perceber isso, mas agora tenho a certeza. Quando me disseste que tinhas aceite o lugar na sucursal na Holanda, quase tive um ataque de coração. Não sabia se valeria a pena pedir-te para ficares, por isso, nunca o fiz. Arrependo-me amargamente.
Hoje corro sozinho na mesma praia, nas praias onde aquele amor tão subtil e tão profundo começou. O mar continua a ser azul, da cor dos teus olhos quando te zangavas, mas é um azul desvanecido, não tem a tua fúria, a tua vontade de viver. Quando me deito hoje na areia molhada, para te escrever esta carta, ela já não é a mesma. Falta aqui o teu corpo, deitado ao meu lado. Às vezes adormecias. E eu ficava horas a olhar para ti, porque eras linda e eras perfeita e mais ninguém te amava como eu.
Quando acordavas eu levava-te a casa, para tomarmos o pequeno-almoço, como pessoas civilizadas, enquanto víamos os desenhos animados. Adoravas os desenhos animados que davam ao fim-de-semana. Parecias uma criança, sentada à frente da televisão, a comer cereais e a rir. Eras tão alegre, arranjavas sempre uma maneira de me fazeres rir. Mesmo que fosse só uma palavra, dita por ti, era o suficiente.
À noite íamos ao cinema, ou ao teatro, dependia da disposição. Davas-me a mão, e gozavas com as lamechices do filme. Mas não era por mal; era só porque, no fundo, também querias que um daqueles actores de capa de revista te levasse a jantar fora. Depois dizias que estava na hora de as crianças se irem deitar e davas-me um beijo na testa. Não sei como é que conseguias, eu tenho trinta centímetros a mais que tu. Mas aquele gesto era sempre igual, sempre teu, sempre perfeito. Davas-me vontade de viver, miúda. Davas-me força.
Desculpa ter guardado tudo isto só para mim durante tantos anos. Eu sei, estás casada com um arquitecto holandês, tens filhos, uma vida tua, da qual eu já não faço parte. Mas tu continuas a fazer parte da minha. Quando corro agora à beira-mar, a tua sombra vai dentro do meu coração, dentro das memórias de ti que não se apagaram. Vivo em ti como tu nunca viveste em mim. Entrego-me a ti a cada segundo que passa, porque este amor não é nada e é tudo. Podias viver noutro planeta, mesmo noutro universo, que a distância não ia ser o suficiente para nos separar. Sei que, no fundo, o teu coração me guarda, perto das lembranças das corridas na praia e das noites no cinema. E se um dia decidires voltar àquela praia, àquelas praias, a todos os paraísos que eram só nossos e de mais ninguém, eu vou estar lá, ou a minha sombra vai estar lá, deitada na areia molhada ao lado da tua.
26 de Julho de 2005

Um Adeus Português

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quanse medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

*

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
Alexandre O'Neill, Poesias Completas

Longe de Veracruz


"Nem toda a gente sabe que penso nunca voltar a Veracruz e às suas praias longínquas. Fui feliz aí, o mês passado, em noite de lua cheia, em Los Portales, nem antes nem depois dessa noite, no último mês de Julho da minha juventude. Mas penso nunca voltar, pois sei muito bem que a nostalgia de um lugar apenas se enriquece se se conservar como nostalgia, e que a sua recuperação significa a morte."
Enrique Vila-Matas, Longe de Veracruz

23.8.09

Nas noites mais longas dessas viagens intermináveis, escrevia páginas e páginas com nomes de cidades abandonadas junto ao mar, e de plantas que provocavam alucinações. Depois queimava tudo.
O arranhar do lápis no papel subia pelas paredes e entranhava-se no corpo, feria a pele e abrigava-se atrás dos olhos. Nessas noites de silêncio ensurdecedor esperava por vozes que nunca chegavam, sentava-me à janela e imaginava as ruas que atravessaria no dia seguinte.

Passou algum tempo desde a última vez que tentei escrever. As palavras parecem não querer sair. Ficam como que presas atrás dos olhos, escondidas onde não as consigo encontrar e passar para o papel. Days have gone by since I wrote my last poem. Now words seem to come out without any sense, without feeling. So I stay here, waiting for some unexpected inspiration, for some brilliant sentence that may change everything.