17.11.09

Debate sobre o referendo do casamento entre pessoas do mesmo sexo

(Aviso: quem não tem paciência para textos longos é melhor ficar por aqui. Este vai ser bem longo.)
Ontem foi transmitido na RTP1 o debate Prós e Contras, sobre o tema “Casamento homossexual: a referendar?”. Eu não pude ver em directo, mas a minha namorada, que é uma querida, gravou, e vimos hoje (obrigado, amor). Uma parte de mim tinha decidido não ver este debate, porque já sabia que ia ficar com a úlcera a latejar. Mas a outra parte, que acabou por vencer, gosta de se manter informada sobre este e outros assuntos e, mais ainda, é irremediavelmente curiosa.
Ouvi muita coisa. Muitas coisas com as quais concordei, muitas coisas com as quais discordei. Vi pessoas que muito admiro a defender as suas ideias; vi pessoas que não conhecia ou por quem não nutro qualquer admiração dizer puras barbaridades.
Antes de mais, houve um pormenor que me deixou logo com urticária: “casamento homossexual”. Esta expressão, que não sei quem foi a besta ortográfica que inventou, foi usada como título do programa. Mal usada, porque o casamento não é homossexual. O casamento é um contrato celebrado entre duas pessoas, que lhes concede uma série de benefícios e implica uma série de responsabilidades. Durante o debate, reparei que eram os membros do grupo contra a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo (é assim que se diz), e a favor do referendo, quem usava essa expressão. Os membros do grupo contrário, a favor da legalização do casamento e contra o referendo, falavam correctamente. E gostei disso.
Comecei por ver Ribeiro e Castro afirmar que, segundo a Declaração Universal dos Direitos do Homem, “a família é a célula fundamental da sociedade”; é verdade. Mas sinceramente, na minha humilde opinião, não vejo em que é que a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo afecta, seja de que forma for, a família.
O mesmo senhor usou mais que uma vez a expressão “sempre foi assim, é assim que deve ser”. Ora seguindo esse raciocínio, os africanos sempre foram escravizados, as mulheres sempre foram subjugadas aos homens, os trabalhadores sempre foram maltratados pelos patrões, e é assim que deve ser (sublinho que esta não é, evidentemente, a minha opinião). Esta lógica é, para começar, estapafúrdia e, para acabar, profundamente preconceituosa.
Depois surgiu, vindo da mesma pessoa, a frase que para mim foi o momento alto da noite: “a relação da família não tem nada a ver com afectos”. O senhor tentou desmentir que esta estupidez lhe tinha saído da boca, mas teve a infelicidade de ficar gravado, e de ter tido milhares de testemunhas. Ah, com que então a família não tem nada a ver com afectos. Pois, faz sentido. Não há pais que gostem dos filhos. Não há casais que se amem. Não, isso é tudo um mito.
Depois apanhei uma frase também fantástica, ainda de Ribeiro e Castro: “o casamento não tem só a ver com quem casa, tem a ver com terceiros”. E isto é outra coisa que eu não fazia ideia. Eu podia jurar que quem decidia se e porquê casava eram quem casava, mas pelos vistos estou profundamente errada. É que antes de casar eu tenho de ir perguntar à cidade toda o que têm a dizer da questão. Pois claro, eu preciso de saber a opinião do senhor da padaria.
Outro brilharete veio de Pedro Picoito, que chamou à defesa da legalização do casamento uma “reivindicação identitária tribal”, dito em tom pejorativo. Outra completa novidade para mim, pelos vistos faço parte de uma tribo e nem sabia.
Nem me vou referir às várias declarações de Jorge Bacelar Gouveia, porque foram simplesmente inomináveis, de uma homofobia pavorosa.
Para terminar a análise das declarações do grupo do sim ao referendo, falou Isilda Pegado. Ora a teoria é: o supremo interesse da criança justifica a discriminação na possibilidade de adopção por casais do mesmo sexo. Perceberam? Traduzindo, os homossexuais não sabem educar correctamente uma criança. É isto que a senhora defende. Os homossexuais não sabem dar amor, carinho, uma casa, uma família, a uma criança. Inacreditável.
Ao grupo do não ao referendo, não tenho críticas a fazer. Concordo com eles, ponto por ponto. Surpreendi-me pela positiva com as afirmações de Jorge Lacão. Aprendi com as referências jurídicas de Isabel Moreira. Vibrei com as declarações de Miguel Vale de Almeida. Admirei todos os outros, Gabriela Moita, Paulo Côrte-Real, Heloísa Apolónia, a representante da AMPLOS, o representante da Novos Rumos, e aqueles que agora me falham. Mostraram que não se pode pretender referendar direitos, que não se pode pretender usar esse argumento para disfarçar preconceito, mostraram como este tema é, mais que actual, uma coisa que nunca deveria ter sido sequer discutida, porque já deveria de fazer parte das leis há muito tempo.
Agora a minha declaração de princípios: sou homossexual; sou a favor da legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo; sou contra o referendo, mas votarei caso este seja feito, e votarei pela legalização; e tenciono um dia casar.

Ficam aqui os links da Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 16.º) e da Constituição Portuguesa (artigo 13.º), que foram referidos várias vezes.

2 comentários:

Avenida da Liberdade disse...

FALTA O GU

Eu não disse: “a relação da família não tem nada a ver com afectos”.
Eu disse: “a regulação da família não tem nada a ver com afectos”.
Falava na ilegitimidade e no perigo da intromissão do Estado no terreno dos afectos e, pior ainda, da expressão sexual dos afectos.
Isso está dito e efectivamente gravado.
E foi esclarecido de novo na segunda parte do programa, em resposta a uma interpelação do Prof. José Ribeiro (da Novos Rumos).
Cumprimentos,

José Ribeiro e Castro

nightcrawler disse...

Eu lamento se foi incompreensível, tanto para mim como para muita gente que estava a ver, aquilo que disse. Ainda assim, grande parte das afirmações que fez foram de uma falta de respeito enorme para aqueles que defendem o casamento entre pessoas do mesmo sexo, já para não falar do que é a desigualdade vivida todos os dias por homossexuais, bissexuais e transgéneros. Se não compreende a importância da legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo para quem todos os dias sofre discriminação e desigualdade, não é o "gu" que torna a sua posição menos inaceitável.