Sempre gostei dos textos da Inês Pedrosa, sejam crónicas ou ficção. É uma mulher inteligente, lúcida, fervorosamente dedicada à cultura, e cujos textos de prosa ficcional me parecem quase poéticos. E agora fiquei a gostar mais um bocadinho dela.
Soube-me tão bem ler este texto, publicado a semana passada na revista Única, do Expresso, pareceu-me tão correcto em todos os seus pontos, uma opinião tão coincidente com a minha, que decidi transcrevê-lo na íntegra. Façam o favor de ler.
A converseta moralucha em torno do casamento dos homossexuais recorda-me aquele fulgurante poema de Sophia de Mello Breyner que começa assim: "As pessoas sensíveis não são capazes/ de matar galinhas/ porém são capazes/ de comer galinhas". Não se pode chamar debate ou discussão ao que é apenas um tricô de preconceitos, uma espiolhagem salivante sobre a vida íntima dos outros. Os homossexuais têm o mesmíssimo direito ao casamento que todas as outras pessoas, porque o contrato de casamento não se estabelece a partir do tipo de práticas sexuais dos que o contraem. A 'ideia' de que o casamento tem por objectivo a procriação, como afirma a dra. Manuela Ferreira Leite, não é confirmada pela lei de nenhum país democrático, talvez porque nem sequer se lhe pode chamar 'ideia': não passa de um fogacho de autoritarismo deslocado. O casamento não é fácil - e toda a gente sabe que não é a procriação o que o sustenta. Demasiadas vezes, pelo contrário, a mimosa prole estoira com essa relação de carne e alma entre dois adultos. Há gente para tudo, mas, em geral, o sexo não suporta a transfiguração dos amantes em papá e mamã.
O casamento é uma decisão extraordinariamente séria. Os heterossexuais tendem a esquecê-lo, porque podem casar e descasar sempre que lhes apetecer. Desde que procriem, segundo os fanáticos da procriação, não há problema. Mas basta olharmos à nossa volta para verificarmos que é exactamente esse o problema: o frenesim da procriação atenta contra os direitos dos procriados, aqueles a que na adolescência passamos a tratar por malcriados. As novas gerações crescem num hipermercado de mães e pais que mudam de mês a mês como as promoções especiais. O mais elementar bom senso confirmará que uma criança adoptada por um casal homossexual estável terá muito mais hipóteses de desenvolver as suas capacidades do que uma outra - e são tantas, basta abrir as revistas ditas cor-de-rosa para o confirmar - que viva de 'tio' em 'tio', de madrasta em madrasta, até à perda de referências final.
O bom senso só não nos pode meter isto pelos olhos dentro porque, em Portugal, o cenário de um casal homossexual com filhos é inexistente. Por causa da moral de esquina, hipócrita, opressora, da maioria amorfa. O lado esquerdo dessa maioria diz coisas como: "Eu não tenho nada contra a adopção por homossexuais, mas o problema é que a criança vai ser discriminada na escola". Estes são os mesmos que há trinta anos diziam: "Eu não sou racista, mas não gostava que o meu filho casasse com uma negra porque as crianças seriam discriminadas na escola". Agora abanam a cabeça, enervados, e dizem: "Não, não é a mesma coisa: porque a criança necessita de um modelo masculino e de um modelo feminno". Que modelos são esses, nesta fase de mutação acelerada em que as mulheres ganham autoridade e os homens doçura? Que modelos eram esses - o pai que bebia e batia, a mãe que apanhava e chorava? O pai que mandava, a mãe que obedecia? O centro dessa maioria diz: "Não sou contra os casais homossexuais, arranjem-lhes leis que os protejam, mas não lhe chamem casamento". Estes estão imbuídos de uma noção de superioridade: chamem-lhe outra coisa, para não atingirem essa coisa sublime a que só nós, os que fazemos o sexo do qual podem nascer bebés, temos direito. A direita dessa maioria diz simplesmente: "Vivam lá a vida deles, mas discretamente". Ou seja, às escondidas, como os senhores faziam filhos às criadas.
O mundo já caminhou o suficiente (no Ocidente, claro), para entender que as crianças precisam de adultos que as amem. Um homem e uma mulher. Ou só um homem. Ou só uma mulher - os filhos dos viúvos, como se criam sem o tal modelo outro? Ou dois homens. Ou duas mulheres. As crianças precisam de modelos de amor. O amor, qualquer amor, ilumina. Os que se amam devem ter o direito à partilha e à herança um do outro. Devem ter o direito a acompanhar-se na saúde e na doença, em casa e no hospital, até ao último suspiro. As pessoas que pretendem negar a outras pessoas o direito ao casamento, fundamentando essa recusa no tipo de práticas sexuais dos outros, estão certamente a precisar de tratamento psiquiátrico. Porque só pensam em sexo e em poder, e há outras coisas na vida, muito mais importantes. A começar pelo amor.
Soube-me tão bem ler este texto, publicado a semana passada na revista Única, do Expresso, pareceu-me tão correcto em todos os seus pontos, uma opinião tão coincidente com a minha, que decidi transcrevê-lo na íntegra. Façam o favor de ler.
A converseta moralucha em torno do casamento dos homossexuais recorda-me aquele fulgurante poema de Sophia de Mello Breyner que começa assim: "As pessoas sensíveis não são capazes/ de matar galinhas/ porém são capazes/ de comer galinhas". Não se pode chamar debate ou discussão ao que é apenas um tricô de preconceitos, uma espiolhagem salivante sobre a vida íntima dos outros. Os homossexuais têm o mesmíssimo direito ao casamento que todas as outras pessoas, porque o contrato de casamento não se estabelece a partir do tipo de práticas sexuais dos que o contraem. A 'ideia' de que o casamento tem por objectivo a procriação, como afirma a dra. Manuela Ferreira Leite, não é confirmada pela lei de nenhum país democrático, talvez porque nem sequer se lhe pode chamar 'ideia': não passa de um fogacho de autoritarismo deslocado. O casamento não é fácil - e toda a gente sabe que não é a procriação o que o sustenta. Demasiadas vezes, pelo contrário, a mimosa prole estoira com essa relação de carne e alma entre dois adultos. Há gente para tudo, mas, em geral, o sexo não suporta a transfiguração dos amantes em papá e mamã.
O casamento é uma decisão extraordinariamente séria. Os heterossexuais tendem a esquecê-lo, porque podem casar e descasar sempre que lhes apetecer. Desde que procriem, segundo os fanáticos da procriação, não há problema. Mas basta olharmos à nossa volta para verificarmos que é exactamente esse o problema: o frenesim da procriação atenta contra os direitos dos procriados, aqueles a que na adolescência passamos a tratar por malcriados. As novas gerações crescem num hipermercado de mães e pais que mudam de mês a mês como as promoções especiais. O mais elementar bom senso confirmará que uma criança adoptada por um casal homossexual estável terá muito mais hipóteses de desenvolver as suas capacidades do que uma outra - e são tantas, basta abrir as revistas ditas cor-de-rosa para o confirmar - que viva de 'tio' em 'tio', de madrasta em madrasta, até à perda de referências final.
O bom senso só não nos pode meter isto pelos olhos dentro porque, em Portugal, o cenário de um casal homossexual com filhos é inexistente. Por causa da moral de esquina, hipócrita, opressora, da maioria amorfa. O lado esquerdo dessa maioria diz coisas como: "Eu não tenho nada contra a adopção por homossexuais, mas o problema é que a criança vai ser discriminada na escola". Estes são os mesmos que há trinta anos diziam: "Eu não sou racista, mas não gostava que o meu filho casasse com uma negra porque as crianças seriam discriminadas na escola". Agora abanam a cabeça, enervados, e dizem: "Não, não é a mesma coisa: porque a criança necessita de um modelo masculino e de um modelo feminno". Que modelos são esses, nesta fase de mutação acelerada em que as mulheres ganham autoridade e os homens doçura? Que modelos eram esses - o pai que bebia e batia, a mãe que apanhava e chorava? O pai que mandava, a mãe que obedecia? O centro dessa maioria diz: "Não sou contra os casais homossexuais, arranjem-lhes leis que os protejam, mas não lhe chamem casamento". Estes estão imbuídos de uma noção de superioridade: chamem-lhe outra coisa, para não atingirem essa coisa sublime a que só nós, os que fazemos o sexo do qual podem nascer bebés, temos direito. A direita dessa maioria diz simplesmente: "Vivam lá a vida deles, mas discretamente". Ou seja, às escondidas, como os senhores faziam filhos às criadas.
O mundo já caminhou o suficiente (no Ocidente, claro), para entender que as crianças precisam de adultos que as amem. Um homem e uma mulher. Ou só um homem. Ou só uma mulher - os filhos dos viúvos, como se criam sem o tal modelo outro? Ou dois homens. Ou duas mulheres. As crianças precisam de modelos de amor. O amor, qualquer amor, ilumina. Os que se amam devem ter o direito à partilha e à herança um do outro. Devem ter o direito a acompanhar-se na saúde e na doença, em casa e no hospital, até ao último suspiro. As pessoas que pretendem negar a outras pessoas o direito ao casamento, fundamentando essa recusa no tipo de práticas sexuais dos outros, estão certamente a precisar de tratamento psiquiátrico. Porque só pensam em sexo e em poder, e há outras coisas na vida, muito mais importantes. A começar pelo amor.
1 comentário:
gostei imenso de ler, está muito bem escrito, directo e tem a razão toda que alguém poderia ter.
Bom Domingo !
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