Já aqui disse o quanto gosto da Inês Pedrosa. Mas tenho de voltar a dizer, porque mais uma vez uma crónica dela me pareceu simplesmente brilhante (apesar de já ter uns dias de atraso, acontece, contingências da vida).
Eles não se importavam com ninguém
"Até chamei a minha mulher para ver e da janela da minha casa assistia-se a tudo". O tudo a que se assistia era um casal de jovens dentro de um carro namorando com muita intensidade. "Eles não se largavam. A rapariga estava sem camisola e o rapaz estava com as calças para baixo. Eu e outras pessoas passámos junto ao carro, mas eles não se importavam com ninguém", explica o mesmo mirador, definido pelo "Diário de Notícias" do passado dia 10 de Dezembro como morador. Não foi por falta de esforço deste voyeur convicto que os namorados se mantiveram embrenhados um no outro, fora do mundo: o homem viu da janela, chamou a sua Maria para que partilhasse a entusiasmante visão - na esperança de que ela aprendesse alguma coisa? - , depois desceu à rua, rondou o carro, e nada. "Quem foi passando na rua ficou 'escandalizado' com o que viu, sobretudo por ser ainda de manhã, e chamaram a Polícia Municipal. A patrulha chegou ao local ainda a tempo de apanhar os jovens em flagrante delito", conclui o "DN". A notícia tem por título 'Casal apanhado a fazer sexo oral', e surge devidamente ilustrada com a fotografia de uma rua desabrida e a legenda "Foi neste local de Paredes que os jovens se entregaram ao sexo". Lembrei-me de um poema de Daniel Filipe que lia, relia e sublinhava nos meus tempos de liceu, sobre um homem e uma mulher que "inventaram o amor com carácter de urgência" e foram perseguidos por isso mesmo. Estes jovens vão responder em tribunal pelo crime de atentado ao pudor. Sobretudo por "ser ainda de manhã"? Se tivessem guardado os seus ardores para o cair da noite, seria o 'atentado' menos grave?
A expressão "moradores escandalizados" é várias vezes repetida ao longo da notícia. A mim, escandaliza-me a existência da notícia. Ou melhor: escandaliza-me que o centro da notícia seja o 'escândalo' declarado pelos moradores e não o 'escândalo' da condenação judicial dos jovens. Quantas pessoas fazem sexo dentro de automóveis - por não poderem fazê-lo em casa dos pais, por não terem dinheiro ou coragem para alugar um quarto de hotel ou porque, simplesmente, começam a beijar-se e não conseguem parar de se entregar um ao outro? Que mal vem daí ao mundo? O desejo, os beijos, os abraços, fazem mal a quem? Os 'moradores escandalizados' reagiriam do mesmo modo se vissem, dentro ou fora de um carro, um adulto espancar uma criança, um homem espancar uma mulher (ou vice-versa, mas é menos frequente) ou um grupo de jovens humilhar outro? Estas coisas acontecem diariamente e não vêm nos jornais, nem são alvo de processo judicial. Imagino a reacção dos pais da rapariga, lá em Paredes, a este processo. Imagino os castigos a que será submetida, já fora da alçada do flagrante delito.
Enquanto escrevo estas linhas passa num canal de televisão uma das muitas obras-primas de Clint Eastwood, "A Troca", filme inspirado na história verdadeira de uma mulher a quem desapareceu o filho e que a polícia interna num manicómio depois de lhe ter devolvido um rapazinho que não era o seu e arquivado o processo. Durante séculos as mulheres que se rebelavam contra as autoridades foram fechadas em hospícios, sujeitas a choques eléctricos - para as libertar da 'histeria' própria do seu sexo - e anuladas como seres humanos. Ainda acontece, em mais lugares do que supomos. A penalização doméstica e social da rapariga apanhada neste 'flagrante delito' será equivalente à do rapaz?
Entretanto, como é que eu faço para conseguir que a Polícia Municipal resolva os atentados ao pudor que me preocupam e escandalizam?
Escandaliza-me o desespero das pequenas empresas que chegam ao fim do ano sem conseguir pagar os salários aos seus funcionários porque os senhores que mandam ainda não tiveram tempo, dois meses depois das eleições, de delegar competências e fazer com que as contas dos serviços prestados sejam pagas. Escandaliza-me que os compromissos assumidos por um candidato político sejam esquecidos ou negados assim que toma o poder. Escandaliza-me o dinheiro público atirado à rua em festanças inconsequentes, em vez de investido nos instrumentos e símbolos maiores de educação e promoção do país. Estes flagrantes delitos que ocorrem à vista desarmada e à luz fria do sol de Dezembro, não escandalizam ninguém? Não interessam os jornais?
Eu também sou jovem, eu sei o que é desejar desesperadamente uma pessoa, e sim, eu já fiz coisas que meio mundo considera impróprias em lugares pouco adequados. E então? Sou pior pessoa por isso? Porque raio é que esta gentinha só se preocupa em ver os outros a fazer sexo, em vez de se meterem nas suas vidas? Isto a mim parece-me uma grandessíssima dor de cotovelo, e não é para menos, segundo os estudos de que ouço falar a vida sexual da maioria dos portugueses vai de mal a pior...
1 comentário:
A maior parte das pessoas que diz à boca cheia que ficou muito chocada e desata a contar todos os pormenores porque como é óbvio o choque não a impediu de prestar muitíssima atenção, sofre do generalizado mal conhecido por "a-minha-vida-é-uma-pasmaceira-e-ver-dois-jovens-no-marmelanço-é-a-coisa-mais-excitante-que-me-aconteceu-desde-1972"
Enviar um comentário