"O reconhecimento do direito ao casamento civil de homossexuais, que será debatido pelo parlamento para a semana, é um salto civilizacional pelo que significa de concretização de um novo paradigma de organização social.
Maior do que à primeira vista possa parecer e não reduzível às tentativas de ridicularização, esta consagração, caso venha a ser uma realidade dentro de meses, vem colocar no plano do reconhecimento pelo Estado os direitos de personalidade - sublinhe-se que a sexualidade é estruturante desta. E este aspecto dos direitos humanos é a consagração absoluta do que pressupõem os valores democráticos que dizem que todas que dizem que todas as pessoas nascem livres e iguais.
Desde da aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, que a instituição destes princípios tem feito um longo caminho. Um dos degraus que nos últimos anos têm sido subidos são precisamente o dos direitos individuais, como os direitos das mulheres e os direitos dos homossexuais.
Mas ao consagrar que a união entre duas pessoas contemplada pelo casamento civil, que tem como pressuposto básico o relacionamento afectivo e sexual, possa ser praticada por homossexuais o Estado português está fazer uma mudança radical no domínio do simbólico: o reconhecimento pela lei de direitos plenamente idênticos entre todas as pessoas sem esconder a sua sexualidade, incluindo aquelas cuja sexualidade não obedece à norma padrão do modelo de relação familiar que domina, sexualidade essa que ainda é vista por muitos como doença, como perversão, pois é não procriativa.
É precisamente a capacidade de o Estado reconhecer igualdade de tratamento com base na sexualidade que é um sinal de mudança de paradigma no entendimento das relações sociais. Não mais a sociedade portuguesa está dividida e classificada de acordo com a concepção de sociedade que tem dominado na cultura judaico-cristã e que assenta no modelo patriarcal heterossexual procriativo como o único aceite como válido.
É certo que este modelo não é o único seguido pela sociedade, nem nunca foi. É certo que, com a procriação medicamente assistida, para haver família, já nem é preciso acto sexual. É certo também que já havia reconhecimento de direitos aos homossexuais, que a igualdade de tratamento e o direito à não discriminação com base na sexualidade está consagrado no artigo 13º da Constituição.
Mas a verdade é que este direito ao casamento estabelece o limiar mítico e mágico, o limiar simbólico de reconhecimento de um estatuto que é estruturante da sociedade. Daí o horror dos sectores conservadores - apostados em que não haja mudança de paradigma de organização social - em que este reconhecimento de direitos use o nome de casamento.
É uma realidade que o problema da discriminação com base na sexualidade não acaba, pois há discriminações dos homossexuais que permanecem, como o do direito à adopção, que só por medo não fica agora resolvido, abrindo-se a porta a que o Tribunal Constitucional se pronuncie contra a lei, por criar uma nova discriminação, já que ela é permitida aos heterossexuais casados e a todos os solteiros. Bem como continua a discriminação dos transexuais e dos transgéneros. Mas o carácter revolucionário desta mudança na lei vai muito para além do que é o reconhecimento de direitos iguais às várias sexualidades.
A admissibilidade pelo Estado de que o casamento é permitido a pessoas do mesmo sexo vem colocar, finalmente, em igualdade perante a lei a mulher e o homem. Isto, porque a sociedade portuguesa deixa de ser concebida com base na divisão entre homem e mulher, que são diferentes e se complementam, na união patriarcal heterossexual e procriativa. E se se completam - mais, se existem para se completar -, então são seres ontologicamente diferentes.
É essa concepção desigualitária das relações sociais básicas que é quebrada pelo Estado português ao admitir - tal como o fizeram vários Estados e estão a fazer muitos outros - este novo paradigma de relacionamento social e ao subir um patamar de importância imensa na persecução dos direitos humanos. Agora mulheres e homens, homossexuais e heterossexuais estão simbolicamente em pé de igualdade no novo modelo de organização social.
E aqui reside a razão da reacção brutal e profunda que tem surgido na sociedade portuguesa a esta alteração - que em termos civilizacionais se equipara ao fim da escravatura ou ao reconhecimento do direito a exercer o voto eleitoral às mulheres. É que os sectores mais conservadores da sociedade portuguesa, onde predomina o fundo cultural judaico-cristão, estão precisamente a reagir na tentativa de defenderem o seu modelo de organização social que apenas assentava no reconhecimento da relação afectiva e sexual que se estabelece na constituição de família através do casamento civil ao par patriarcal heterossexual e pocriativo, para quem os direitos dos homossexuais são uma fantasia perigosa de alguns radicais de esquerda ou de direita, assim como o são os direitos das mulheres - basta ver como a Igreja católica portuguesa se tem pronunciado sobre a igualdade entre mulheres e homens. Setores conservadores esses que ainda não perceberam ou querem fazer de conta que não perceberam que o mundo mudou e está a mudar. E que o paradigma apontado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos está a ser conquistado passo a passo e a enquadrar as relações sociais - e não apenas os aspectos simpáticos e pseudo-caritativos para os pobrezinhos que estão nesse documento.
Resta saber até que ponto o PS tem de facto a dimensão da mudança de paradigma social que está em jogo e se não deita tudo a perder no tacticismo do jogo político perante a pressão de um referendo. Até porque, mesmo que Cavaco silva decida defender publicamente o referendo, ele não pode convocá-lo sem a maioria da Assembleia. O máximo que pode fazer é repetir a actuação que teve na aprovação dos rstatuto dos Açores. A ver vamos se o PS mantém na defesa dos direitos individuais dos homossexuais a convicção que mostrou em defesa dos direitos políticos dos açorianos."
Fonte: Público 30 de Dezembro de 2009
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