6.1.10

"Já viram, 90 mil, 90 mil é muito. É 1%, vejam lá. Mal enche um estádio. Pois, se calhar até nem é assim tanto..."

Pois é, meus caros, voltei a comprar o Público. Eu sei o que é que estão a pensar, e sim, parece existir um ser muito masoquista dentro de mim. Como já era de esperar, na página do espaço público dei de caras com um texto de um senhor chamado Lourenço Martins, de quem, confesso a minha ignorância, nunca tinha ouvido falar, "Juiz Conselheiro Jubilado", no qual o autor defende o referendo sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Por baixo aparece um texto de Mário Vieira de Carvalho, musicólogo e professor universitário, que é contra o mesmo referendo. E podiamos passar aqui uns parágrafos a falar da disposição dos textos na página: o texto de Lourenço Martins tem direito a uma fotografia e a uma citação a vermelho, o que, segundo os meus poucos conhecimentos de publicidade, ajuda a tornar o texto apelativo; o texto de Mário Vieira de Carvalho não tem nada disso, passa quase despercebido. Sou eu que estou conspirativa ou isto parece estranho?
Do texto de Mário Vieira de Carvalho não tenho nada a apontar. Assinala a hipocrisia de quem defende o referendo exclusivamente para impedir a legalização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, que são a maior parte das pessoas que o defendem.
Quanto ao texto de Lourenço Martins, como habitualmente, tenho muito a dizer. Começa por dizer que "o referendo está previsto na Constituição da República como uma expressão de pronúncia directa do povo sobre questões de relevante interesse nacional." É verdade. Como sou uma pessoa prevenida fui ver a Constituição e cito a alínea 3 do artigo 115.º: "O referendo só pode ter por objecto questões de relevante interesse nacional que devam ser decididas pela Assembleia da República ou pelo Governo através da aprovação de convenção internacional ou de acto legislativo." Mas nem esse artigo da Constituição, nem nenhum outro, explica o que são questões de relevante interesse nacional. Então quem diz ao senhor juiz conselheiro, e a todos os que andam por aí a agitar o referendo como bandeira de guerra, de que nesta situação é necessário um sufrágio popular?
Continuando, vejo que o senhor ainda não tinha conhecimento, quando escreveu o texto, do planeamento da votação em Assembleia da República da petição, assinada por 90 mil pessoas que defendem o referendo, no dia 8, em conjunto com os projectos de lei do Governo, do BE e do PEV sobre o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Pois meu senhor, metade da sua crónica perde-se devido ao mau timing. Acontece.
Em seguida afirma que "este afogadilho em resolver o assunto é chocante e o próprio Presidente daRepública reagiu indirectamente ao mesmo." Pois, é chocante, é chocante o esforço feito por um grupo de pessoas para existir igualdade em Portugal, é chocante que haja quem queira que a sua dignidade seja respeitada. É chocante, sem dúvida. E não sei se o Presidente da República lhe disse, pessoalmente, que estava chocado por este assunto vir a ser resolvido. A mim não me disse isso. Mas também, o que ele diz pouco me importa, visto que o seu único argumento é o mais que repassado "há problemas mais importantes". Pode até haver, mas tanto há agora como haverá sempre, porque, caso ainda não tenham reparado, Portugal não vai passar da miséria; encontra-se lá há nove séculos, não me parece que seja na situação actual que vá sair.
Ora, a seguir surgem dois parágrafos onde o senhor fala, primeiro, sobre um parecer do Tribunal Constitucional sobre a suspensão do processo legislativo devido à entrega desta petição, e depois sobre a sua indignação de ver uma petição assinada por 90 mil pessoas não ser tida em conta pela Assembleia. Para ambos remeto a explicação de Isabel Moreira, professora de Direito Constitucional e pessoa em cujos conhecimentos confio. Segundo ela esta petição não tem o poder de suspender os trabalhos em curso e, principalmente, 90 mil pessoas não é assim tanto. Agradeço-lhe por se ter dado ao trabalho de fazer as contas, e de chegar à conclusão que 90 mil pessoas é menos de 1% da população nacional.
E temos mais um ponto com o qual não concordo: "E nem se diga que o facto de o partido no Governo a ter incluído [a questão da legalização do casamento] no seu programa significou a adesão dos portugueses." Ora, não se diga porquê? Porque os portugueses são uns ignorantes e preguiçosos que votam nos partidos sem saber o que eles defendem? Pois problema o deles! Tivessem-se informado antes, para não virem agora fazer figura de ursos.
Havia muito mais a dizer sobre isto. Havia centenas ou talvez milhares de páginas que se podia escrever, sobre a homofobia disfarçada, sobre o preconceito, sobre as mentalidades mesquinhas que defendem apenas a moral e os bons costumes, que se preocupam apenas com as aparências e nunca com a igualdade, a dignidade ou a felicidade dos outros. Eu fiz o que podia fazer, votei em quem defendia os meus direitos. Agora só me resta esperar que haja mais deputados que vejam o que realmente vale a pena defender: a igualdade e a felicidade, ou as aparências e as tradições bacocas.

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