24.8.09

Shattered Glass

Costumávamos correr pela praia, aos sábados de manhã, quando a cidade ainda dormia e a noite já era só uma sombra anil sobre o mar. Saíamos bem cedo, com o vento frio a bater na cara e ríamos à gargalhada pelas ruas desertas. Depois o mundo era só nosso, enquanto nos deitávamos na areia molhada, a olhar para o céu e a falar do nada. Falávamos horas a fio, até não termos mais assunto.
Quando o mundo acordava para um novo dia, já nós tínhamos vivido metade das nossas vidas naquela praia, nesta praia, em todas as praias para onde fugíamos a meio da madrugada. A praia era o nosso paraíso, o nosso universo secreto, gerado à parte das convenções e das regras, onde só nós tínhamos poder para viver à nossa maneira.
Foi em todas essas praias que me apaixonei por ti, quando te atiravas para o mar, e me dizias adeus. Levei tempo a perceber isso, mas agora tenho a certeza. Quando me disseste que tinhas aceite o lugar na sucursal na Holanda, quase tive um ataque de coração. Não sabia se valeria a pena pedir-te para ficares, por isso, nunca o fiz. Arrependo-me amargamente.
Hoje corro sozinho na mesma praia, nas praias onde aquele amor tão subtil e tão profundo começou. O mar continua a ser azul, da cor dos teus olhos quando te zangavas, mas é um azul desvanecido, não tem a tua fúria, a tua vontade de viver. Quando me deito hoje na areia molhada, para te escrever esta carta, ela já não é a mesma. Falta aqui o teu corpo, deitado ao meu lado. Às vezes adormecias. E eu ficava horas a olhar para ti, porque eras linda e eras perfeita e mais ninguém te amava como eu.
Quando acordavas eu levava-te a casa, para tomarmos o pequeno-almoço, como pessoas civilizadas, enquanto víamos os desenhos animados. Adoravas os desenhos animados que davam ao fim-de-semana. Parecias uma criança, sentada à frente da televisão, a comer cereais e a rir. Eras tão alegre, arranjavas sempre uma maneira de me fazeres rir. Mesmo que fosse só uma palavra, dita por ti, era o suficiente.
À noite íamos ao cinema, ou ao teatro, dependia da disposição. Davas-me a mão, e gozavas com as lamechices do filme. Mas não era por mal; era só porque, no fundo, também querias que um daqueles actores de capa de revista te levasse a jantar fora. Depois dizias que estava na hora de as crianças se irem deitar e davas-me um beijo na testa. Não sei como é que conseguias, eu tenho trinta centímetros a mais que tu. Mas aquele gesto era sempre igual, sempre teu, sempre perfeito. Davas-me vontade de viver, miúda. Davas-me força.
Desculpa ter guardado tudo isto só para mim durante tantos anos. Eu sei, estás casada com um arquitecto holandês, tens filhos, uma vida tua, da qual eu já não faço parte. Mas tu continuas a fazer parte da minha. Quando corro agora à beira-mar, a tua sombra vai dentro do meu coração, dentro das memórias de ti que não se apagaram. Vivo em ti como tu nunca viveste em mim. Entrego-me a ti a cada segundo que passa, porque este amor não é nada e é tudo. Podias viver noutro planeta, mesmo noutro universo, que a distância não ia ser o suficiente para nos separar. Sei que, no fundo, o teu coração me guarda, perto das lembranças das corridas na praia e das noites no cinema. E se um dia decidires voltar àquela praia, àquelas praias, a todos os paraísos que eram só nossos e de mais ninguém, eu vou estar lá, ou a minha sombra vai estar lá, deitada na areia molhada ao lado da tua.
26 de Julho de 2005

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